Contos

 AURORA

            Quando me despedi de Aurora, ela com o coração em descompasso e a voz entrecortada, me perguntou:
- Como ficaremos?
Responder eu não sabia, confesso. Disse apenas, esta não será a última dor que o amor nos causa. Era uma madrugada de janeiro, creio. E como nos espreitando, a lua por trás dos galhos do sauce nos espiava calada. Emanava da planta uma tristeza de órfão, era como se a árvore chorasse, vertendo por entre os ramos nostálgicas lágrimas douradas.
Não sei precisar qual dia da semana foi, sei apenas que era madrugada quando me exilei do grande amor da minha vida.  Era tempo de sol, recém principiava o ano, janeiro penso. Quando se vive num lugar em que a oralidade predomina, datar os acontecimentos é coisa sem sentido, exercício quase desprezível, pois o tempo acontece e passa e o que se guarda, são apenas as lembranças de um tempo bom que se foi, como as águas de uma chuva, ou uma lembrança ruim que fica marcada como uma cicatriz no corpo. Qual uma chuva de verão, aquela madrugada passou, porém, as lembranças que ficaram jamais cicatrizaram. Ruim, não foi.
            Tão jovens, éramos!
            Esse olhar de hoje, assim triste como o sauce, distante! Qual dissera a poetisa, de fato, eu não o tinha. Não! Eu não o tinha. E na solidão da noite, leio Cecília e vendo o luar pergunto-me, em que celas do tempo ficou a altivez dos meus olhos?
            Com sua sede de retirante, o tempo se apressou em varrer a suavidade da tez do meu rosto. Agora, entre rugas que brotam e crescem, conserva-se nutrida e discreta serenidade, evidenciam essas marcas, o espelho do quarto. Minha barba espessa e grossa não tem mais o brilho nem a maciez de outrora. Meus olhos, guardados pela mata ciliar das minhas pálpebras reluzem ainda, quando releio uma das cartas que ela me enviara. Então, canto como o tiziu, plagio suas cambalhotas, a lembrança tece minha alegria e um fio de esperança trás. Esta noite, por exemplo, a lua que outrora nos espiou apaixonados por entre os galhos, desce suave e penetra-me a alma pela janela do quarto. Escrevo. Quero guardar este instante. Anseio jamais ver o sol, pois a lua de hoje é sempre a mesma de ontem e esta lembrança é todo elo entre a ilusão que me faz acercar dela.
            Cinqüenta anos! Trinta dos quais arraigado a uma ilusão.
Revirando a memória, paro e indago sem saber ao certo, se fiz os caminhos que percorri ou se foram os caminhos que percorri que me fizeram ao longo destes últimos trinta anos.
Parti naquela manhã e nunca mais vi Aurora.
            O sorriso tímido e tristonho de Aurora, ainda hoje guardo nos olhos. Nas mãos trêmulas, um livro. Nos lábios, um tácito beijo e um pulsar frenético no peito. E isto é tudo que me prende a alma, lembranças. O fio de esperança que ela me deixou preso ao sorriso, a frase solta no ar e meu temor de frustrar os sonhos dela. Isto é tudo que tenho e guardo, no cofre do meu penar.
A saudade parte-me em pedaços tão minúsculos que mal se pode ver. Amanhece, em vão, olho pela janela o infindo horizonte em busca da luz da lua, meus olhos vertidos de dor não se contentam e penso: Pior que a certeza da morte, é a dúvida de que Aurora já não me espera.
















NO MEIO DO CAMINHO

        Pelo cobogó, via-se o sol tocar o chão, enquanto o horizonte tingia-se de amarelo como uma tangerina madura, quando o professor tirou uma folha de pape,l guardada em sua pasta vermelha, e iniciou uma leitura descontraída da entrevista. Todos nós tínhamos a cabeça na estrada e pouco nos interessávamos sobre as palavras de um certo poeta que falava sobre o fato de ser chamado de “casmurro rotulado”. Queríamos mesmo era pôr os pés na estrada, aproveitar o fim da tarde, antes do cair da noite, para distrair-nos um pouco, durante os cinquenta minutos de percurso que faríamos a pé, ao longo da estrada de barro que percorreríamos de volta para casa. O professor Adelmo Rodrigues, que lia sorridente fragmentos da entrevista, não tinha pressa, tecia intermináveis comentários, eternizando nossa impaciente espera. Quando finalmente o professor nos perguntou se já conhecíamos o poeta Carlos Drummond de Andrade, os poucos, que se pronunciaram, afirmaram que sim, quase, todos apenas balançando a cabeça no sentido vertical, como o fazem as lagartixas. O gesto, que parecia ensaiado, nada teve de intencional no sentido de afirmar que tínhamos o mínimo conhecimento sobre o tema, tencionava, apenas, evitar o prolongamento da prosa, evitar que o professor debulhasse a biografia do tal poeta. Mas, o professor, que não desperdiçava um só minuto de sua aula, ainda guardava junto à entrevista outra surpresa. Sacou uma segunda folha da pasta poliondas e dirigiu-nos um olhar silencioso, logo se voltando para a folha, como quem consome uma paisagem que lhe traz ditosas e pretéritas lembranças.  A sala de aula inteira, sem que ninguém pedisse para calar, acompanhou aquele instante de contemplação em silêncio de convento. Não era uma cena comum, sobretudo no fim da tarde, em nossa classe, não que a turma fosse barulhenta, mas porque tamanho silêncio era inexplicável.
         Alguns instantes depois, o professor nos dirigiu o olhar, ainda contemplativo, tinha nas retinas o brilho reluzente do sol e na face a serenidade do crepúsculo. Deu dois passos adiante do birô onde estava apoiado, e firmou-se reto qual uma linha esticada na vertical e pôs-se a recitar um verso que caía com suavidade de orvalho.
         Nunca tinha ouvido antes o poema, poucas tinham sido as ocasiões em que eu tivera contato com o gênero literário, exceto os momentos em que meu pai recitava alguns cordéis, quase sempre reinventados, por não sabê-los por completo, ou quando os ouvia diretamente da boca dos cordelistas na feira livre de Arapiraca ou através do rádio. Aquele estilo de poesia era para mim uma arte estranha. Mas fiquei profundamente comovido com a complexa simplicidade dos versos. Naquele tempo desconhecia o que seria um verso, vindo a conhecer o seu significado somente muito tempo depois. Quanto aos alunos da classe, todos saíram assim que o professor permitiu. Eu fiquei. Paralisado, queria guardar a sonoridade daquelas palavras que soavam em minha cabeça como uma intrigante cantiga.

No meio do caminho tinha uma pedra,
tinha uma pedra no meio do caminho...

Não lembrava mais que dois versos inversamente repetidos. Mas, aquela articulação das palavras fora o suficiente para provocar meu deslumbramento. Quando já não restava mais ninguém, sai vagarosamente da sala. O professor Adelmo Rodrigues, que nos ensinava matemática, não quebrou o silêncio, limitando-se a reorganizar os papéis em sua pasta vermelha. Eu não quis acompanhar meus colegas naquela ditosa tarde de setembro. Queria andar sozinho pela estrada. E ao chegar na vertente da Perucaba, que descia mansa sobre o leito arenoso, me pus a olhar as pedras que ornavam as margens. Não eram poucas as pedras, eram duas, três, quatro, cinco, dez, vinte cinquenta, centenas de pedras no meio do caminho, vivendo ali para enfeitar o rio de minha alma. Como é que eu nunca antes, tivera dado por elas! Eram seixos quebrados, outros inteiros, polidos, pontiagudos, grandes o suficiente para que um único seixo coubesse na mão, outros tão pequenos que o esforço de dois dedos seria necessário para acariciar um deles. Todos ali confortavelmente acomodados na areia, amarelados, negros, alvos, descansavam juntos, ou grudavam-se nas encostas agarrando-se a elas parecendo temerem uma possível queda. Nos aluviões as pedras eram limpas, areadas e fartas, banhavam-se nas águas salobras do rio, despidas e desavergonhadas. Eram tantas que minha conta não dava conta. E eu que tanto as juntava pra construir meus castelos, naquele instante, não as queria para nada. Apenas as pegava sentindo-lhe a textura e as soltava, às vezes não as queria tocar, apenas as olhava, descobrindo-lhe a forma, a cor seu sexo... Queria sentir o cheiro das pedras, juntar-me a elas.
Fiquei naquela curiosa inquietação, por muito tempo, e distraído não vi quem passava, tampouco vi que o sol exausto passara para repousar no infinito do horizonte e quando atinei para o tempo, já não conseguia distinguir as pedras do areial que lhes servia de leito. A ave-maria se aproximava e com ela caía a escuridão da noite e eu era apenas um vulto distraído às margens da Perucaba. “No meio do caminho tinha uma pedra”, uma pedra enorme chamada estrada a qual eu deveria percorrer no escuro até chegar em casa, quarenta minutos de andança a passos descontraídos, mas que eu teria que encurtá-los devido ao medo do escuro e por causa de minha mãe que devia estar a minha espera.
Tomei a estrada de barro num impulso qual fazem os maratonista. Mas, a Ladeira dos Narcisos conteve minha pressa. Senti o coração em descompasso. - E o pulmão? - Um fole. Ainda percebia as pedras soltas no barro vermelho da ladeira e cuidava-me para não tropeçar nelas. Vencido o obstáculo, parei no topo e volvi o olhar para a Vila Pau D`arco, de onde eu havia saído no final da tarde. Não consegui distinguir nada além de luzes dispersas. Entre o topo da ladeira, lugar onde eu estava parado e a vila. Um enorme breu, estrelado por imensas luzes de vaga-lumes, ocultava os elementos diurnos da paisagem. O Perucaba, com suas pedras, naquele instante, era apenas uma imagem presa e latente na minha memória. Mas eu precisava prosseguir a marcha, tinha que percorrer toda a estrada que corta os Narcisos, seus bancos de areia solta na estrada, os seixos no caminho e o ladrar dos cães. Sim. Os cães, soltos nos terreiros das casas, à noite, eram traiçoeiros. Havia uma meia dúzia de vira-latas no caminho que avançavam sobre as pernas de quem passava e um descuido poderia resultar em uma inesperada mordida. Preveni-me. Improvisei uma tabica de pau-ferro que permaneci segurando firme com a mão direita e senti-me seguro pra enfrentar os intrometidos na estrada.

“tinha uma pedra no meio do caminho...
no meio do caminho tinha uma pedra...”

A noite tinha pressa, logo adornando de estrelas todo o céu, eram tantas que pareciam pedras de brilhante, a cintilar no firmamento. E a lua, musa e companheira dos viajantes noturnos, naquele principiar de noite estrelado, parecia temerosa em furtar o espetáculo. A lua retardou, aguçando o fio de temor, que assolava, vez por outra, meu coração de menino distraído pela estrada. Passado o perigo que impunha os cães, concentrei-me no poema de Drummont e julguei ser possível escrever um. Talvez a idéia que me ocorria naquele instante fosse um meio de superar o medo do pedaço esquisito de estrada que eu deveria percorrer margeada de capoeira até alcançar as residências próximas a que eu morava. Os Pilões, na época, era um lugar rodeado de capoeiras, havia cheiro de mato por todo o caminho, sobretudo das flores das Canafístulas que exalavam um odor agradabilíssimo e inconfundível no verão. Apressei os passos e concentrei-me no ensaio mental do possível poema que escreveria, logo que chegasse a casa. Tinha na mão esquerda um caderno singelo, um livro didático, um lápis com borracha no lado oposto à ponta com grafite e uma caneta esferográfica azul, mas eu não podia fazer uso dos objetos, pois a escuridão da noite, tal qual a pressa de chegar a casa, não permitia.
Ao aproximar-me de casa, deixei a estrada e tomei o atalho que me conduziria ao fundo do lar onde residíamos. Morávamos num lugar em que o desenho da estrada formava um triângulo, recorrendo ao atalho evitaria o prolongamento da caminhada. Tive um alívio excepcional quando alcancei os mamoeiros do quintal, agora poderia respirar fundo, sem medo, sem pressa e sem os perigos da minha imaginação na estrada escura. Teria o tempo necessário para pôr no papel os versos mentalizados e inéditos, frescos na memória pubescente.
Ao me aproximar da privada, situada ao fundo do quintal, pude distinguir o vulto da minha mãe em pé, reta e imóvel, qual um poste, próxima à porta da cozinha. Tinha ela o olhar concentrado na estrada que liga o sítio Varginha ao Olho-d´água, por onde ela supunha que eu viesse. Na penumbra, não distingui seu semblante e tive a ingênua atitude de aproximar-me dela, intencionado a entrar em casa para escrever meu primeiro poema.
- Por onde tu andavas até essa hora? - Indagou minha mãe com severidade.
- Estava olhando as pedras. – disse, sem pensar.
- Cabra atrevido! - bradou minha mãe, enquanto me fez sentir o peso de sua mão direita em meu ouvido.
Depois daquela tarde, muitas foram as vãs tentativas de escrever um poema tão belo quanto o poema de Drummond, mas tudo o que em mim ficou foi o gosto, o prazer, a contemplação e agora vivo assim:

[1]Não tenho barco,
só a inspiração dos rios.

Qual um pescador,
vivo a ler os peixes.

E pesco palavras
nas correntezas dos rios.

Fisgo uma palavra
e me vem um cardume de versos.

O rio é uma correnteza
de poemas líquidos em peixes vivos.


[1] O rio, in: Brito, José Benedito de, Caminhos diVersos, João Pessoa, F&A Gráfica e Editora, 2010.











LAN HOUSE


Sol não havia, naquela tarde de sábado. A rua mais parecia um charco, recoberta por águas fétidas da galeria de esgoto que estourara. E como se não bastasse, chuva. Uma chuva torrencial, persistente e fria que, ao jorrar na rua, somava-se as águas do esgoto criando um lamaçal escuro e lodoso, que dificultava a marcha dos passantes.


Luiza não tinha dúvidas, aquela chuva inoportuna lhe estragaria os planos. Um tédio! Com sorte, chegaria ensopada ao local do encontro, caso não caísse vitimada pelo escorregadio traiçoeiro da rua. Mas sua determinação era inconteste. Chegaria ao local previsto, na hora certa e finalmente veria face a face aquele que ela tanto sonhava ver pessoalmente um dia.


Procurando evitar surpresas, andou cuidadosamente sobre o atoleiro, calculando todos os riscos visíveis ao pisar sobre o solo, os saltos altos das sandálias não a ajudavam é certo, mas devia demonstrar elegância, afinal aquele seria um dia inesquecível.


A custo de grande esforço e habilidade venceu os oitocentos metros de chão encharcado e chegou a parada do ônibus, onde mediu os danos que o lamedo havia feito na roupa e constatou, para felicidade sua, que não havia lama no jeans que comprometesse sua aparência e seguiu o curso.


No ônibus em movimento e livre das armadilhas da chuva, podia pensar no encontro com tranqüilidade. Palpitava-lhe o coração ao notar que chegava a hora do encontro com o grande homem de sua vida. E se tudo de fato ocorresse sem contrariedade, o casamento seria em breve.


Luisa, ainda no ônibus em movimento, sacou da bolsa, a fotografia impressa em papel ofício na impressora da lan house no dia anterior. Havia passado cerca de três meses, do seu primeiro contato digital, com Alberto e desde então, nenhuma semana havia transcorrido sem que se comunicassem através do orkut. Mas, aquela condição suburbana, e de parco recurso dificultava os planos. A culpa era do Edgar que não modernizava a lan house e ainda cobrava um absurdo por cada hora de navegação, pensava ela. Discretamente, olhou a fotografia como procurasse privacidade, sentiu cólicas repentinas e inexplicáveis, ao ver aquele rosto sorridente e jovial. Percebeu que suava em demasia, enquanto se certificava de que ninguém a olhava. Um frio desceu-lhe na espinha, tentou disfarçar a ansiedade e distraída, quase perde o ponto de parada, pois tinha ela o pensamento fixo no encontro que se acercava a cada instante.


Desceu na Lagoa e apressou-se por causa da chuva que não cessava, correu e o vento arrebatou-lhe o abrigo da sombrinha a deixando exposta a chuva. Xingou sem saber se dirigia o insulto ao vento ou a chuva e seguiu as pressas, quase correndo.


Ao chegar no Tambiá, tinha o coração em descompasso. Teve a sensação de que todos que se encontravam em frente à porta de entrada a olhavam e rogou para que não houvesse algum conhecido dela, entre os que ali estavam. Sem embaraços entrou no Shopping e foi ao banheiro, onde enxugou o rosto suado, retocou a maquiagem e desembaraçou o cabelo.


Refeita das contrariedades do tempo, dirigiu-se a lan house no interior do Shopping e pagou por trinta minutos para usar um computador que tivesse câmara.

Um comentário:

  1. "Aurora", simplemente bello, ¿cuantas historias similares se han tejido?, la mia es una de ellas, creo que más allá del sufrimiento por la duda de un reencuentro, debemos estar plenos, pues Dios permitió encontrarnos con nuestra mitad, con nuestra alma gemela, sin importar que caminos tomamos, son tantos y tan diversos,.... lo que prevalece es el amor, el verdadero amor que es intacto cual piedra preciosa, a pesar del tiempo y de la carga que deba llevar nuestra frente y nuestra espalda...
    La muerte es un paso, es un segundo, estoy cierta que cuando llegue ese instante, mi último suspiro será para ese gran amor.

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